Município mais indígena do Brasil realiza escuta histórica que valoriza saberes ancestrais e projeta novo modelo educacional para a primeira infância, com base na cultura, na língua e na realidade dos povos originários.
No extremo norte de Roraima, onde o céu toca as montanhas da Serra do Sol e a floresta conversa com as tradições ancestrais, Uiramutã reafirma seu papel de protagonista na construção de um Brasil mais plural e justo. No mês de julho, o município realizou uma escuta pública inédita voltada à consolidação do primeiro currículo intercultural indígena para a Educação Infantil, que está sendo desenvolvido como política pública local desde 2021.
O encontro aconteceu na Escola Municipal Antônio Rodrigues e reuniu lideranças indígenas, pais, professores, gestores públicos e membros da sociedade civil para discutir o documento que deverá nortear, de forma oficial, o ensino na primeira infância em um território onde mais de 96% da população se declara indígena. A proposta pedagógica, construída ao longo de três anos, representa um marco na história da educação brasileira: pela primeira vez, um município desenvolve um currículo infantil inteiramente baseado em saberes tradicionais, línguas indígenas e cosmovisões originárias, com a participação ativa das próprias comunidades.
Educar com raízes: onde a infância encontra a ancestralidade
Mais do que incluir conteúdos indígenas nos planos de aula, o currículo de Uiramutã propõe um modelo educacional que nasce da terra, das famílias e das narrativas que atravessam gerações. Em vez de adaptar uma estrutura pronta, construída a partir de lógicas ocidentais, o município optou por um processo inverso: ouvir, dialogar, aprender com os anciãos, escutar as mães, registrar as brincadeiras, os cantos, os ciclos da natureza — e, a partir disso, desenhar uma proposta curricular autêntica, viva e enraizada.
“Estamos falando de uma educação que começa com a identidade. Antes de aprender o alfabeto, a criança precisa saber quem ela é, de onde vem, qual é a sua língua, a sua história, o seu povo. Só assim a aprendizagem faz sentido”, destacou Damázio de Souza Gomes, secretário municipal de Educação.
Durante o encontro, representantes das comunidades indígenas Macuxi, Patamona e Ingarikó apresentaram sugestões, apontamentos e reforçaram a importância de uma educação que respeite os ciclos da natureza, os saberes tradicionais, os tempos próprios da infância indígena e o direito à diferença.
Da aldeia à política pública: um processo coletivo
A escuta pública foi o desfecho de um longo processo de diálogo iniciado em 2021, que envolveu visitas técnicas a escolas indígenas, reuniões nas comunidades, levantamento das práticas pedagógicas já existentes e uma escuta minuciosa com educadores indígenas e não indígenas. As localidades de Serra do Sol, Pedra Branca, Ticoça, Água Fria e outras aldeias da região participaram ativamente das discussões.
“A construção do currículo foi feita passo a passo, ouvindo cada realidade. Temos escolas onde se fala majoritariamente a língua Macuxi, outras com forte presença da cultura Patamona. Em algumas, convivem alunos indígenas e estrangeiros. Nosso desafio foi pensar um documento que respeite todas essas identidades e promova um diálogo entre elas”, explicou Lindinaia Pereira Melquior, coordenadora da Divisão de Ensino da Secretaria Municipal de Educação.
Com o encerramento da fase de escuta pública, as contribuições coletadas serão analisadas por uma equipe técnica, incorporadas ao texto-base e submetidas ao Conselho Municipal de Educação. A versão final seguirá para votação na Câmara de Vereadores. Se aprovado, o currículo se tornará lei municipal, com implementação prevista para o ano letivo de 2026.
Um legado para o Brasil
Embora Uiramutã seja um dos menores municípios de Roraima em termos populacionais, sua iniciativa educacional projeta um impacto que vai além de seus limites geográficos. Ao propor um currículo centrado nas identidades indígenas desde a Educação Infantil, o município não apenas inova — ele reivindica o direito de ensinar com seus próprios olhos, suas próprias línguas, suas próprias memórias.
A proposta dialoga diretamente com os princípios da Educação Intercultural, reconhecida na Constituição e nos marcos legais da educação brasileira, mas ainda raramente implementada de forma concreta na Educação Infantil.
Essa ação também abre precedentes para que outros municípios de maioria indígena, quilombola ou ribeirinha desenvolvam suas próprias matrizes curriculares, adaptadas às realidades locais, respeitando o princípio da gestão democrática e da autonomia territorial.
Educação que nasce da floresta e sonha com o amanhã
Enquanto os olhos do Brasil olham para grandes centros urbanos em busca de inovação, Uiramutã ensina uma lição essencial: o futuro da educação brasileira pode — e deve — ser construído a partir das raízes. Com um currículo que brota da terra, se alimenta da memória coletiva e floresce na infância, o município planta hoje uma semente de transformação que poderá frutificar por gerações.
A escuta pública realizada é mais do que um rito administrativo. É o som do Brasil profundo dizendo que quer, pode e sabe construir seu próprio caminho. E que esse caminho começa pelos pés pequenos das crianças que aprendem não apenas a ler o mundo — mas a habitá-lo com respeito, consciência e pertencimento.




